Era no início do Movimento do Contestado em que mineiro e capixabas pleiteavam terras dos dois lados. Mas ele viria a ser governador do Espírito Santo, alguns anos depois da visita em 1938.
Tudo era bastante precário, principalmente o transporte e as comunicações, nas primeiras décadas do século passado em nosso Estado. Para se ter uma ideia, haviam índios ainda remanescentes das tribos dos botocudos e aimorés, pelo lado capixaba de Baixo Guandu e Aimorés no lado mineiro. Uma difícil vida levava o servidor público estadual compenetrado de seus deveres quando precisava deslocar-se para cumprir tarefas mais importantes. Até mesmo as pequenas distâncias, para serem vencidas, exigiam grande sacrifício e desprendimento. Eram poucos, pouquíssimos, os caminhos abertos entre uma localidade e outra. Tudo que se via em grande escala eram as matas, os animais e vez por outra encontrava-se uma tropa de ousados e valentes migrantes em busca de parada.
Geralmente, a cada jornada, o viajante se via obrigado a criar suas próprias trilhas, abrindo picadas na mata e improvisando, com pedras, troncos e galhos, pontes sobre riachos e córregos, a fim de não perder sua carga, seu tempo e até a vida, em alguns casos.
O relato minucioso de uma dessas heróicas jornadas em nosso interior, foi assinada por Carlos Lindenberg, secretário estadual de Agricultura em 1938 e que governou o Espírito Santo em dois períodos (1947/50 e 1959/62).
Os motivos, na narrativa de Lindenberg:
“Em fins de 1936 (…) recebi uma carta do dedicado fiscal de Matas do Estado, sediado no distrito de Barra de São Francisco, sr. José Machado, me informando que os mineiros, já ocupando Bom Jesus Mantenas, estavam invadindo o resto do distrito…”
Primeiro o secretário enviou à região os encarregados de Medição Eugênio e Wilson Cunha, “com a incumbência de procederem às medições de lotes para os posseiros (…), a fim de que o Espírito Santo desse as escrituras, legalizando ditas terras”. Depois – precisamente em setembro de 38 – foi ele próprio, Lindenberg, inspecionar os serviços e a região, acompanhado pelos dois encarregados, pelo prefeito de São Mateus, Otto de Oliveira Neves (Barra de São Francisco era distrito do município), o fiscal de Matas José Machado, três peões que tomariam conta da tropa e o sr. Herédia de Sá, que o missivista descreve assim: “Funcionário da Estrada de Ferro São Mateus a Nova Venécia, contador de lendas e histórias que muito nos divertiu”.
As fagulhas queimavam a pele e furavam a roupa
De Vitória a São Mateus a comitiva viajou pela “estradinha de automóveis” e, a partir daí até Nova Venécia, pela Estrada de Ferro de máquinas à lenha, “precaríssima, pois as fagulhas queimavam a pele da gente e furavam a roupa”.
“Havíamos dormido em São Mateus – conta o missivista – porque a viagem de Vitória até lá durava um dia. Embarcamos cedo com destino a Nova Venécia, onde chegamos cerca de 9 horas. Nova Venécia era a vila mais avançada que existia na época, fronteiriça às matas que cobriam quase toda a região até Barra de São Francisco e a Serra dos Aymorés, cordilheira entre Minas e Espírito Santo. Havia na zona algumas poucas fazendas abertas por desbravadores pioneiros intrépidos”.
Lindenberg e seus auxiliares deixaram Nova Venécia por volta do meio-dia, “depois de um lauto almoço” oferecido pela família de Salvador Cardoso, que cedeu os animais para a viagem. “Cavalgamos sob o sol inclemente até às 17 horas, quando alcançamos o sítio de propriedade do sr. Justo, onde devíamos pernoitar, de acordo com o programa traçado. Evidentemente o conforto era relativo naquele ermo interior, onde não existiam água encanada, nem luz, e a casa era rústica, mal cabendo a família do sitiante”.
Um ataque impiedoso dos piolhos de galinha
“Jantamos todos na casinha – prossegue o relato –, um bom jantar preparado pela dona da casa, no qual não faltaram carne de porco e boa cachaça. Cedo fomos dormir, pois estávamos cansados da viagem e deveríamos partir ao amanhecer. Para mim e Otto Neves, foi designado um quarto com uma cama de casal com colchão de palha de milho, até que bom, se não fosse a quantidade de piolhos de galinha que nos atacaram impiedosamente. Dormimos mal e nos levantamos cedo para ficar livres dos piolhos e seguir viagem. Verificamos então que embaixo da cama estava localizado um ninho dentro do qual a galinha calmamente chocava seus ovos, e lá ficou chocando”.
Os outros membros da comitiva – “menos categorizados do que nós” – se acomodaram na tulha, dormindo em cima do monte de café, “também em companhia dos piolhos de galinha; embora a notável boa-vontade do sr. Justo e de sua família, foi a noite mais desconfortável que tivemos em toda a viagem”.
Bem cedo, seguiram todos para Barra de São Francisco, que foi alcançada ao entardecer, numa jornada através da mata “em picadas mandadas abrir pelos encarregados de medições e caminhos abertos pelos raros colonos que por ali se fixavam na ocasião, em taperas cobertas de palha de palmito”.
Por volta das 10 horas já estavam todos famintos e, na margem de um regato, almoçaram o feijão de tropeiro levado em embornais. No caminho, deram uma passadinha na casa do coronel Fagundes, onde tomaram “um café muito gostoso”. O coronel, conta Lindenberg, tinha fama de valente e era muito respeitado, mas os recebeu “muito amavelmente”, pois estava diante das “autoridades maiores que, pela primeira vez, a região recebia”.
Às 17 horas chegaram a Barra de São Francisco, “que ainda não podia ser chamada nem de povoado”, a julgar pela descrição do secretário: “Onde é hoje a rua principal existiam quatro ou cinco casinhas, sendo que do lado do pé do morro havia uma capela de uns quatro metros quadrados. Das casas, a melhor era de madeira, coberta de telhas e bem ampla, onde nos hospedou seu proprietário, sr. Gonzales (…). Isso era Barra de São Francisco em 1938″.
À noite, um banho no rio, “de que muito necessitávamos. Só mesmo a força de vontade, a saúde de ferro e o cumprimento do dever me impediram de desistir da viagem, ainda em casa do sr. Justo, no primeiro dia”.
A permanência em Barra de São Francisco durou dois dias; no terceiro, a comitiva saiu em direção a Gabriel Emílio(Mantena), onde visitou as três casas que o Estado mandara construir, “para escola, quartel de polícia e cartório”. A única autoridade ali presente era o cabo Domingos, “valente e dedicado, marcando nossa jurisdição naquele fim de mundo. O cabo já havia resistido a três policiais mineiros que o atacaram, mas foram obrigados, pela sua reação, a fugir, não mais voltando”.
Quem mata só precisa enterrar suas vítimas
O próximo pouso foi em Córrego Manteninha, “na casa de um sr. Botelho que foi muito cordial e atencioso conosco, enquanto sua senhora nos preparava o jantar”. No dia seguinte o grupo subiu a Serra dos Aymorés para melhor conhecer o divisor de águas, “onde deviam correr os nossos limites”.
“A situação é clara e salta aos olhos de qualquer leigo: ali é o limite entre os dois estados”, escreveu Lindenberg, frisando: “Olhei para o Ferrujão e contemplei lá embaixo, depois daquele verdadeiro paredão, o Estado de Minas, imenso, infindável, grandioso. Na subida vi uma cerquinha fechando uma área de uns 16 metros quadrados e perguntei ao camarada que me acompanhava o que era aquilo. Respondeu-me: ‘Não é nada, não, senhor. Foi um camarada que matou dois e enterrou ali’. Está preso o assassino?, perguntei. ‘Não, senhor. Aqui, quem mata só tem a obrigação de enterrar o morto e nada mais’.
Não havia na zona a menor garantia. Nem polícia, nem escola, nem registro civil, nem nada. Era terra de ninguém”.
Mais um dia e a viagem prosseguiu até Vargem Grande e em seguida para Bom Jesus de Mantenas, já em poder de Minas Gerais. O cidadão que prometera recebê-los desistiu da hospedagem, “porque teria recebido ameaça de um oficial de polícia de que, se recebesse capixabas em sua casa, seria cortado a chicote”. O pouso foi na Pensão Paulista e por ali a comitiva permaneceu três dias, “descansando, perguntando, observando e partindo depois para Cachoeirinha, onde pegaríamos o trem da Vitória-Minas, de regresso”.
O trecho final do relato dá bem uma ideia da precariedade das condições que Lindenberg encontrou em sua histórica viagem:
“Cerca de duas horas depois de nossa partida encontramos um rapaz de uns 15 anos tocando um capado gordo, enorme, amarrado por um pé. Na hora, ele, o porco, estava deitado no leito seco de um córrego e babava muito. Perguntamos: para onde você vai com esse animal? ‘Vou para Cachoeirinha, cumprir uma empreitada que tomei lá com o sr. Chico’. Mas o bicho está com muita sede, e como você vai se arranjar? ‘Eu contava encontrar água aqui nesse córrego, mas secou. Aqui perto tenho um conhecido e eu chego lá hoje, onde vamos dormir’. E quanto tempo você leva para chegar a Cachoeirinha? ‘Uns três meses, sim senhor’.
Num arraial novo, chamado Sapucaia, os funcionários comeram alguma coisa pelas 13 horas e chegaram à estação ferroviária em cima da hora de pegar o trem. “Assim voltamos à civilização, depois de caminharmos umas trezentas léguas sob o sol causticante de setembro e rigorosa seca”.
Morte
Em 6 de janeiro de 1991, Carlos Lindenberg falece em sua residência, em Vitória, em decorrência de um AVC, Acidente Vascular Cerebral, sofrido em 19 de agosto de 1990. Na data em que ocorreu o AVC, um domingo, Carlos caminha, com a esposa Maria e dois amigos, na Praia do Canto, em Vitória, em direção à sua residência após almoçar em um restaurante. A súbita queda na rua anuncia o AVC. Carlos passa, no Hospital Santa Rita, em Vitória, da consciência à inconsciência. Diante do estado irreversível, os médicos aconselham a ida para a sua residência onde falece na mesma data em que, 20 anos antes, havia falecido a sua filha Maria de Lourdes. Carlos Lindenberg é sepultado no cemitério de Santo Antonio, em Vitória, às 18 horas de um dia chuvoso, coberto pela bandeira do Espírito Santo. O Governo do Estado decreta luto oficial. Barra de São Francisco o homenageou com um colégio, dando a este o seu nome. O educandário é conhecido como polivalente e fica no bairro Irmãos Fernandes próximo ao centro da cidade.
fotos/http://institutocarloslindenberg.org.br
Data de Publicação: sexta-feira, 03 de junho de 2016